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terça-feira, 7 de dezembro de 2010

A NOITE MARCHA (NO LÍBANO E NO BRASIL)

Prelúdio: o Líbano de Moaz 

Samuel Moaz é um cineasta israelense que acaba de ser agraciado pela crítica com o Prêmio do Cinema Europeu por sua obra "Líbano". Em 2009, já havia ganho o Leão de Ouro no festival de Veneza. Moaz, em 1982, participou da Guerra do Líbano que, segundo ele, foi a primeira em que Israel invadiu o território de outro país. O filme "Líbano" mostra um pouco da  experiência e reflexões de seu autor sobre esta guerra que foi, em 2006, reiniciada por Israel. O filme é uma retomada de uma velha ideia de Moaz de fazer um filme crítico sobre o assunto. Como fruto de uma reflexão sobre o fenômeno da guerra, "Líbano" reflete a consciência crítica de seu autor, como podemos ver a seguir:
"- Quando usa um canhão você é o executor A morte virá por uma ação direta sua (...) E, quando resolvi ser diretor, a primeira coisa que visualizei foi a semelhança entre a visão da câmera e a do canhão."
"- A guerra é um tipo de besta que precisa da morte para existir. Soldados são pessoas normais, e pessoas normais não acham a morte uma coisa normal. Mas o truque da guerra é simples: você coloca um ser humano numa trincheira, numa situação de risco de morrer, e o obriga a agir por instinto. O processo, praticamente físico , pode levar duas horas, dois dias ou uma semana. Mas em algum momento você cede e atira. E, pior, passa a achar que isso não é problema. Você se afunda na guerra e deixa de ser você."
Acho que os trechos acima mostram que o seu autor deve ter feito um filme muito interessante (em breve ele deve estrear no Brasil). O único reparo que faria é que a guerra não pode ser vista como um ser autônomo-ela não pode virar um fetiche. A guerra  é produzida por homens movidos por diversos interesses que quase  sempre são apresentados sem clareza. Soldados apertam os gatilhos e morrem nas guerras que interessam a outros.

I-  O Nosso Líbano

Há noites em que não adianta fugir. Ela chega e nos leva a pensar. Nenhuma forma de escapismo lhe tira o vigor. Ela marcha sobre nós e nos deixa as marcas de seus calçados. E nessas horas, são pesados os seus pés. E barulhentos seus passos. Sua marcha não nos deixa dormir. A cama estremece, sua voz grita de ensurdecer e nos fazer tremer de medo. O corpo teima, mas tem pouco a fazer: não resistir mais (pois "na  tortura toda carne se trai") e  delatar seu próprio ser. Assim surgiu o poema abaixo. Segue depois, algumas reflexões sobre o nosso assombroso Novembro. Há quem prefira o sol do verão que se aproxima com toda a sua luz e esperanças, mas a noite de Novembro talvez cresça sobre o país e suas "flores mórbidas", que acompanham nossos defuntos, ainda estarão e exalar "o perfume que roubam de ti". Há os que preferem sorrir e gargalhar de tudo isso, mas deviam vir "para ver os meus olhos tristonhos/ e quem sabe, sanhavam meu sonho"... Somos todos iguais.

A NOITE MARCHA

Ouve-se um grito desesperado na sombra da noite
Ouve-se um grito desesperado
Houve na sombra um grito
Que se ouve desesperado na noite
Houve na noite
Um grito assombrado

Na sombra da noite de um desesperado
Houve um grito
Que se ouve na noite
Se ouve a noite
No grito desesperado
De uma sombra

A sombra tomou a noite
E o grito
Assombrou o desesperado
O assombro não esperado
E o grito gritou ainda mais
Ouve-se rajadas de gritos
Gritos desesperados
A noite ainda mais se assombrou
A sombra amedrontou-se
Mais assombrado o grito ficou

O desespero
Tomou conta de tudo
Anoiteceu-se tudo
Ouviu-se mais gritos
Houve quem ouviu e calou-se
Mas gritou-se um inesperado assombro
Assombrou-se tudo
Silêncio... tudo silenciou-se
Menos as botas
Elas marcham.
        Rio, 04/12/2010


II- Passado e presente: tudo ao mesmo tempo agora

Novembro de 2010 na cidade do Rio de Janeiro será um dia retomado pelo futuro como um novembro tenebroso. Carros incendiados, guerras em algumas comunidades e triunfalismo daqueles que ensandecidos se aproximam da possibilidade de sentirem  orgasmos ao assistirem pela televisão os corpos dos que tombaram na insanidade da nossa violência carioca. Estes que quase gozam perante a dor alheia nos lembram os depoimentos de prisioneiros políticos da nossa última ditadura relatando o prazer sentido por alguns de seus algozes na prática de seus ordinários ofícios. Era a noite (A Noite dos Generais, segundo o título de José Meirelles Passos) que marchava entre nós, cegando até mesmo os mais humanitários e cristãos ardorosos. "A noite tem deixado seus rancores gravados/ a faca e canivete/ a lápis e gillete/ por dentro das pessoas (...) e dentro de mim" ( Ivan Lins e Vitor Martins).

Caiu a ditadura mas não nos livramos de suas chagas. As passeatas dos anos 80 pareciam realizar os desejos "proféticos" da dupla Ivan Lins e Vitor Martins na canção Abre Alas que assim dizia : "abre alas pra minha folia/ já está chegando a hora". Mas era ainda cedo e as chagas deixaram marcas na pele e na alma: banditismo, torturas, corrupções, crueldades. E estas marcas e outras estão nos seios de toda a nossa sociedade. É o que vimos no mês de Novembro passado. Em meio aos corpos, sangue, tiros, granadas e tantos outros sinais de nossa insanidade carioca surgiram aplausos nas ruas, nos becos, vielas, escritórios e nos meios de comunicação. A noite tenebrosa se disfarça de sol. Mas, não se iluda, estamos na noite, por mais que a voz doce de Flávio Venturine nos diga que há "noite com sol" ou que o bom Milton tente negar o medo e a dor ("Ei, medo, eu não te escuto mais/ você não me leva a nada/ e se quiser saber pra onde eu vou/ pra onde nasce o sol/ é pra lá que eu vou).

O nosso Novembro passado, que ainda é tão presente e possivelmente tão futuro, está mais para uma interpretação triste da velha canção alegre de Tom e Dolores Duran. Repare em um dos vídeo abaixo que em pouco mais de dois minutos, Elis transforma a Estrada do Sol em uma estrada noturna e sombria e chuvosa. Diz a canção que "é de manhã" e isto nos faz crer que o sol traz toda a luminosidade necessária,  mas ainda estão a brilhar "os pingos da chuva que ontem caiu". Elis entristece a canção porque estava entristecida pela perda causada pela morte (no YouTube há uma outra versão mais completa com o depoimento da cantora). Nós, em nosso Novembro, festejamos a morte. Mas me ocorre uma  lembrança irônica dos versos de Bandeira ("Bendita a morte/ que é o fim de todos os milagres") se os juntarmos a antiga canção sobre a ditadura de Ivan Lins que dizia que "somos todos iguais nessa noite/ na frieza de um riso pintado/a certeza de um sonho acabado/(..)/ pelo ensaio diário de um drama/ pelo medo da chuva e da lama/ (..)/ nós vivemos debaixo do pano/ pelo truque malfeito dos magos/ pelo chicote dos domadores/E o rufar dos tambores..." Os magos de 1964 nos deixaram a noite, os magos das telinhas coloridas tiram das cartolas o sol. Ambos de Novembro.

A Noite Marcha entre nós. A Noite marcha sobre nós. E Ela toca o dobrado.

Somos todos iguais nesta noite
   Ivan Lins

Somos todos iguais nesta noite
Na frieza de um riso pintado
Na certeza de um sonho acabado
É o circo de novo...

Nós vivemos debaixo do pano
Entre espadas e rodas de fogo
Entre luzes e a dança das cores
Onde estão os atores..

Pede a banda
Pra tocar um dobrado
Olha nós outra vez no picadeiro
Pede a banda
Pra tocar um dobrado
Vamos dançar mais uma vez...

Somos todos iguais nesta noite
Pelo ensaio diário de um drama
Pelo medo da chuva e da lama

É o circo de novo...
Nós vivemos debaixo do pano
Pelo truque malfeito dos magos
Pelo chicote dos domadores
E o rufar dos tambores...

Pede a banda
Pra tocar um dobrado
Olha nós outra vez no picadeiro
Pede a banda
Pra tocar um dobrado...
Vamos dançar mais uma vez...

2 comentários:

Giovana disse...

Meu grande amigo
Vc tem TODA razão.
Dava medo e ao mesmo tempo ódio assitir tudo aquilo pela TV, me sentia impotente, nessa guerra sem fim. Nas manchetes dos jornais pessoas levando criaças para tirar foto nos tanques de guerra, como se fosse muito "legal" eles estarem ali....
Ficamos presos em casa, com medo do que poderia acontecer....
E relação a muisca de Ivan Lins, SOMOS TODOS IGUAIS ESSA NOITE, será que somos?
As vezes acho que os bandidos estaão controlando tudo, eles são os "DOMADORES COM SEUS CHICOTES"
Lamento como vc disse ve rque tem gente que acha isso "normal" e o pior. divertido...

Ainda nao tinha lido esse seu post. Ta de parabens pelas palavras

Jorge Willian da Costa Lino disse...

Concordo com a música: somos todos iguais nessa noite. Não são esses bandidos os domadores. Compartilho da ideia de que a marginalização não é fruto de uma escolha de um indivíduo sobre o seu próprio ser. Se assim o fosse, teríamos que acreditar que a natureza determina os destinos das sociedades. Veja só: por que esta marginalização toda nos países periféricos do capitalismo e não na Noruega ou em Cuba? Nossa sociedade é produtora de marginais e marginalizadores... os indivíduos tem uma margem de ação e reação...mas não determinam o mundo em que nascem e vivem.
Somos todos iguais nessa noite...esta que nos foi oferecida como herança pelos domadores e seus chicotes: a ditadura e as clases dominantes da época.