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terça-feira, 25 de outubro de 2011

A AMANTE

Um dia ela chegará. Ela te abraçará e te beijará. Ela  te carregará pelos braços e, gostando ou não, ela te conduzirá por uma velha estrada.

Um dia ela te cobrirá de afagos, de carinhos, de carícias e, talvez, teu corpo nem assim a desejará. Repulsivo, ele procurará se afastar e, ainda assim, ela te apertará em seu ventre morno.

Um dia ela passará os dedos em teus lábios que docemente se fecharão e beijando se tornarão silenciosos. Só um suspiro será ouvido, e, ainda assim, talvez. E seus dedos também tocarão teus olhos que se entregarão ao escuro da noite. Seu corpo lésbico envolverá o teu, e o tempo, que hoje estar a bater dentro de ti, inerte se fará.

Um dia ela que te ama te conquistará, e tu, que tanto a afasta, já não saberás o limite entre teu corpo e ela. Neste dia já não saberás mais quem és. Mas descobrirás a parte oculta do que sempre chamaste de vida. Ela, a amante de todos nós.

   Jorge Willian

 Rio, 21/10/2011,  2h.

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

CAI UMA PÉTALA

(Para uma amiga, "luz que não se apaga nunca")


Cai uma pétala
Caem as folhas
Mas a clorofila
Lambida pela luz
Transformou  em vida
A luz tragada pelo verde.



No invisível
Baila o carbono                  
 Rodopia até se oxigenar.
  No invisível tudo transcende
 Tudo transpassa   
Tudo se transforma
              Tudo se esvai.



                 
     Cai a pétala
     E a luz agora baila
     Em forma de invisível
    Gás que respiramos. 
  
Caíram as folhas
A luz invisível baila
Transformada
Misteriosamente
No ar-vida em nós.


Cai o visível
Mas pétala e folhas
Transmutadas
Pela luz que tragaram
São agora sutilmente
Gás-vida na dança
De tudo que há. 
 Rio, 21/10/2011  0h e 22m.

Jorge Willian


                  "Som que vai longe(...)/ Sempre com a gente (...)/ Brilho na escuridão/ Luz que não se apaga nunca/ Iluminação." (Olhos do Coração. Tunai e Sérgio Natureza)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

kratosfilia ( O Ciúme)

quero o poder autoritário, absoluto, ditatorial, monárquico,
quero todo o poder possível e o impossível também
o poder total eu quero
poder divino da deidade  mais poderosa
quero controlar este anárquico, subversivo, indomável
a batucar na cozinha do teu peito
este coração que não se dobra
que não ajoelha quando eu passo
que não agacha, não se submete,
que pula, salta, explode em risos
quero mesmo todo o poder, absoluto poder universal
quero domar teu coração, fazê-lo doméstico
domá-lo e tirar-lhe o ânimo
aniquilar o espírito a batucar
torná-lo paraplégico, arquejante
apropriar-me de seu espírito
quero, por fim, seu coração como o meu
morto.

jorge willian
12/10/2011 (4h e 23 m)

domingo, 2 de outubro de 2011

DOS REINOS DA MORTE E DA LIBERDADE (MITOLOGIA )

O Dia estava preocupado com a Noite que tardava a chegar. Ele já estava cansado e esperava ser substituído, seu turno já findara fazia mais de duas horas e a Noite nada de apontar. No dia anterior ela, que estava há pouco tempo na fazenda, também se atrasara e isto era um erro imperdoável pelo senhor de ambos, o Tempo. Este era implacável, costumava castigar todos que estavam ao seu redor, até mesmo seus filhos- o Agora, a Vida e a Lembrança-  temiam a fúria do velho patriarca. A Noite que não entrasse no eixo, não! Ia sentir o que era uma seção de chibatadas do senhor.

Escravo fiel que era, o Dia pensou em ir comentar com seu senhor que algo estranho acontecera, pois não era normal que a Noite não  viesse lhe substituir. Foi na direção da casa do Tempo, mas resolveu esperar mais um pouco: se o senhor ficasse zangado poderia chicoteá-lo e as últimas marcas ainda não estavam cicatrizadas. Passado mais alguns instantes, o Dia tomou coragem e foi até o seu senhor. Antes de bater na porta do Tempo, resolveu olhar pela janela- não queria interromper o patrão, caso este estivesse fazendo algo importante. Ao olhar para dentro tomou um grande susto: a Noite nua fazia gemer o seu amo. Sem chicote, ela açoitava o Tempo. O frenesi deste   era intenso e parecia, dentro do aposento do senhor, que o Tempo estava estagnado. Sem saber o que fazer, o Dia resolveu voltar para o seu lugar. Mas a sua fadiga cada vez era maior. Pensou em fugir, mas tinha medo do desconhecido e sabia que o Tempo com os seus capitães do mato, principalmente o velho Destino, o encontraria. Pensou no suicídio mas, como todo escravo do Tempo, tinha medo da fala mansa da velha Morte, a esposa do senhor.

Ainda pensava o que fazer quando viu a Noite caminhando toda faceira. E como estava bela! As estrelas de sua vasta cabeleira cintilavam ainda mais e ela cantava uma canção suave. Nesse instante, o Dia se apaixonou pela Noite, mas lembrou da cena em que esta  controlava o Tempo, virou o rosto e saiu correndo para o mato. A Noite sorriu sem nada entender. Sem pressa deitou-se e tudo escureceu. Fez-se um silêncio a sua volta.

O Dia a observava do mato e seus pensamentos ainda eram confusos. Queria, como a Noite, deitar e descansar profundamente. Queria mesmo deitar com a Noite e se entregar as suas carícias. Seria um sonho. Um devaneio. Mas isto provocaria o Tempo que se tornaria ainda mais cruel. E se o Tempo morresse? E se ele, o Dia, o matasse? Não seria possível. Ele sempre acreditou que matar é pecado mortal e que o trabalho, mesmo forçado e nas suas condições, era mais do que um capricho do Criador, era a pena justa por atos que a memória já não lembrava. Além disso, o Dia acreditava  que sua existência só era possível do lado do seu senhor.

Já estava quase na hora de substituir a Noite, e o Dia, tão preocupado que era, não queria se atrasar. Correu em direção à moça que, sempre sorridente, caminhou lentamente em direção ao riacho que ficava atrás da casa do Tempo. "Vê se não atrasa", gritou o Dia. Ela fez que não ouviu e pensou: "Coitado, vai morrer de tristeza se continuar assim. Muito medroso, bobo... não consegue viver sem domínio, sem controle.Tão jovem e parece ter o dobro da minha idade. Ufa, é muito ingênuo mesmo: não consegue perceber que o Tempo já está morto e que seu fantasma geme de medo encarcerado em seus aposentos. Logo logo  terá um novo senhor a lhe chicotear. Se fosse igual a mim, o Dia seria mais feliz. Não tenho medo e se precisar mato mesmo. Senhor nenhum encosta as mãos em mim para me bater e tentar me usar. Ontem foi o Tempo e me preparo para matar a Morte, aquela velha  com ar de boazinha mas que, de fato, comanda tudo isso aqui. Depois que der fim nela volto para meu reino, a Liberdade. Convidarei o Dia me acompanhar. Ele virá?".
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Acabo de ler no blog Angola: Os Poetas o poema abaixo e como o mesmo reflete sobre o tempo resolvi postá-lo aqui e, é claro, recomendar o blog que faz um belo trabalho de divulgação dos poetas angolanos.

                           A construção do tempo


mobilizo os poderes iniciáticos, à memória
subtraídos, os gestos
audazes que só o devir
perdoará, as ilusões temporãs, pobres lâmpadas
para sobreviver ao presente.
amanhã ,
um sinal qualquer, misterioso e sem nome,
dirá: aqui esteve alguém que, silencioso,
colheu o doce segredo das tempestades.
(João Melo)