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domingo, 2 de outubro de 2011

DOS REINOS DA MORTE E DA LIBERDADE (MITOLOGIA )

O Dia estava preocupado com a Noite que tardava a chegar. Ele já estava cansado e esperava ser substituído, seu turno já findara fazia mais de duas horas e a Noite nada de apontar. No dia anterior ela, que estava há pouco tempo na fazenda, também se atrasara e isto era um erro imperdoável pelo senhor de ambos, o Tempo. Este era implacável, costumava castigar todos que estavam ao seu redor, até mesmo seus filhos- o Agora, a Vida e a Lembrança-  temiam a fúria do velho patriarca. A Noite que não entrasse no eixo, não! Ia sentir o que era uma seção de chibatadas do senhor.

Escravo fiel que era, o Dia pensou em ir comentar com seu senhor que algo estranho acontecera, pois não era normal que a Noite não  viesse lhe substituir. Foi na direção da casa do Tempo, mas resolveu esperar mais um pouco: se o senhor ficasse zangado poderia chicoteá-lo e as últimas marcas ainda não estavam cicatrizadas. Passado mais alguns instantes, o Dia tomou coragem e foi até o seu senhor. Antes de bater na porta do Tempo, resolveu olhar pela janela- não queria interromper o patrão, caso este estivesse fazendo algo importante. Ao olhar para dentro tomou um grande susto: a Noite nua fazia gemer o seu amo. Sem chicote, ela açoitava o Tempo. O frenesi deste   era intenso e parecia, dentro do aposento do senhor, que o Tempo estava estagnado. Sem saber o que fazer, o Dia resolveu voltar para o seu lugar. Mas a sua fadiga cada vez era maior. Pensou em fugir, mas tinha medo do desconhecido e sabia que o Tempo com os seus capitães do mato, principalmente o velho Destino, o encontraria. Pensou no suicídio mas, como todo escravo do Tempo, tinha medo da fala mansa da velha Morte, a esposa do senhor.

Ainda pensava o que fazer quando viu a Noite caminhando toda faceira. E como estava bela! As estrelas de sua vasta cabeleira cintilavam ainda mais e ela cantava uma canção suave. Nesse instante, o Dia se apaixonou pela Noite, mas lembrou da cena em que esta  controlava o Tempo, virou o rosto e saiu correndo para o mato. A Noite sorriu sem nada entender. Sem pressa deitou-se e tudo escureceu. Fez-se um silêncio a sua volta.

O Dia a observava do mato e seus pensamentos ainda eram confusos. Queria, como a Noite, deitar e descansar profundamente. Queria mesmo deitar com a Noite e se entregar as suas carícias. Seria um sonho. Um devaneio. Mas isto provocaria o Tempo que se tornaria ainda mais cruel. E se o Tempo morresse? E se ele, o Dia, o matasse? Não seria possível. Ele sempre acreditou que matar é pecado mortal e que o trabalho, mesmo forçado e nas suas condições, era mais do que um capricho do Criador, era a pena justa por atos que a memória já não lembrava. Além disso, o Dia acreditava  que sua existência só era possível do lado do seu senhor.

Já estava quase na hora de substituir a Noite, e o Dia, tão preocupado que era, não queria se atrasar. Correu em direção à moça que, sempre sorridente, caminhou lentamente em direção ao riacho que ficava atrás da casa do Tempo. "Vê se não atrasa", gritou o Dia. Ela fez que não ouviu e pensou: "Coitado, vai morrer de tristeza se continuar assim. Muito medroso, bobo... não consegue viver sem domínio, sem controle.Tão jovem e parece ter o dobro da minha idade. Ufa, é muito ingênuo mesmo: não consegue perceber que o Tempo já está morto e que seu fantasma geme de medo encarcerado em seus aposentos. Logo logo  terá um novo senhor a lhe chicotear. Se fosse igual a mim, o Dia seria mais feliz. Não tenho medo e se precisar mato mesmo. Senhor nenhum encosta as mãos em mim para me bater e tentar me usar. Ontem foi o Tempo e me preparo para matar a Morte, aquela velha  com ar de boazinha mas que, de fato, comanda tudo isso aqui. Depois que der fim nela volto para meu reino, a Liberdade. Convidarei o Dia me acompanhar. Ele virá?".
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Acabo de ler no blog Angola: Os Poetas o poema abaixo e como o mesmo reflete sobre o tempo resolvi postá-lo aqui e, é claro, recomendar o blog que faz um belo trabalho de divulgação dos poetas angolanos.

                           A construção do tempo


mobilizo os poderes iniciáticos, à memória
subtraídos, os gestos
audazes que só o devir
perdoará, as ilusões temporãs, pobres lâmpadas
para sobreviver ao presente.
amanhã ,
um sinal qualquer, misterioso e sem nome,
dirá: aqui esteve alguém que, silencioso,
colheu o doce segredo das tempestades.
(João Melo)

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