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quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

O TEMPO, A UTOPIA E O SOCIALISMO

jorge willian

Passado, presente e futuro. Assim dividimos o tempo, assim o percebemos. Temos o hábito de analisar, de subdividir as coisas, mesmo que para isso seja preciso transformar as coisas em outras. Criamos, por exemplo, o tempo futuro, aquele que nunca é, que sempre será se nunca for. Sentimos o tempo passado como se ele estivesse morto e não atualizado em nós, no hoje, no presente. Assim achamos que podemos lidar com a vida: analisando o seu devir, mas esquecendo, às vezes, de sintetizá-lo simplesmente vivendo a vida como uma só. Por isso esquecemos que só há um tempo: o tempo de viver. E este é o tempo presente, aquele que está agora. O resto deve ser mero engano de nossas mentes analíticas. Só assim nós humanos, criadores de Chronus, entre outras divindades, podemos viver os três tempos que analiticamente inventamos: o tempo passado que se atualiza, o tempo futuro que sempre estamos a esperar e o tempo presente, o que sempre se apresenta. É este último, o presente, o tempo que desfaz e (re)cria novas utopias.


É no presente que tudo está a se transformar (com a nossa intervenção ou não). É nele que a vida se atualiza. O que seria do tal passado se nossas mentes não atualizassem o que vivemos? A memória e a história só são possíveis por essas atualizações que fazemos do que foi vivido. Nosso cérebro humano produziu a capacidade de relembrar e, ao fazê-lo, atualiza o que chamamos de passado. Este, portanto, nunca é ele mesmo, ele é sempre o que fazemos dele no presente. E aqui temos a beleza e o perigo. Podemos, por exemplo, reatualizar Heidegger nas universidades (e isto, reviver o pensamento de alguém, parece belo), mas as atualizações o transformam, normalmente, em um filósofo que não teve engajamento político (seu apoio ao nazismo) e, assim, produzimos meias verdades ou belas mentiras. O mesmo se dá com algumas releituras atuais  de Nietzsche, o filósofo da moda, quando  esquecem do papel político elitista e, em certos casos, reacionário dos pensamentos deste autor.

É no presente também que esperamos os próximos acontecimentos e chamamos a isso de futuro. Mas é no devir que os acontecimentos se realizam. Futuro parece, pois, ser um esperar que aconteça algo. Quando, penso eu, é na ação cotidiana, no agir no presente que possibilitamos ou não que algo se realize. É o presente, que atualiza o passado, que possibilita o vir-a-ser. As utopias, desejos de quase-não-possibilidades, são classificadas desta forma por acharmos que são quimeras, que são impossibilidades, que não são acontecimentos próximos. Mas quem diria a Leonardo da Vinci que o homem não poderia voar? Para ele era um acontecimento provável, para os seus contemporâneos era mera alucinação ("utopia"), mas atualizamos recentemente os projetos de Da Vinci e, como bem lembrou Chico Buarque em uma de suas canções,  "O homem da Gávea criou asas". E as asas deltas são exemplos  de utopia realizada. É exemplo também de que a vida é uma só e só tem um tempo, o tempo de viver. E o futuro, por que podemos pensá-lo sem que seja nunca vivido? É porque podemos sonhar, ou melhor, projetar. Mas que fique claro que projetar é uma ação que realizamos aqui e agora.

Nos Séculos XVIII, muitas projeções foram feitas sobre o que poderia acontecer com a humanidade. Em 1798 Thomas Malthus nos assombrou com a hipótese de que a catástrofe da fome era iminente, pois a população humana, segundo ele, crescia de forma muito mais rápida do que a produção de alimentos. A projeção de Malthus tinha o equívoco de acreditar na incapacidade do homem de potencializar seus meios de produção. Se a projeção malthusiana não se deu, ela pelo menos nos obrigou a repensar tanto o planejamento demográfico quanto o da produção da riqueza.

Outros pensadores, já no século seguinte, perceberam a necessidade de mudanças na sociedade. Estava claro que mais do que a relação população/produção de riqueza o problema estava na distribuição das riquezas produzidas. Diversos grupos tentaram produzir dentro da própria sociedade capitalista formas de convivência mais igualitária. O conjunto dessas práticas e os pensamentos criados em busca da igualdade deram origem ao que foi chamado de socialismo. Estas buscas socialistas, porém, são chamadas de utópicas porque além de não bulir de fato com os status do capitalismo acreditavam na possibilidade de coexistir com este. Uma visão crítica destas formas de socialismo foi apresentada em diversos textos por Marx e Engels.  Mas, de certa forma, estes tentavam na época atualizar o pensamento de Thomas Morus (autor de "Utopia") a partir de releitura crítica do conhecimento acumulado até aquela época. E como ciência é sinônimo de conhecimento, Engels adotou para um dos seus livros o título "Do Socialismo Utópico ao Socialismo Científico". Era, portanto, uma forma de atualizar as projeções. Estas, para o autor, possibilitariam ações em busca de um vir-a-ser que modificasse aquele momento histórico.

No século XX, algumas utopias se realizaram: a luta política dos trabalhadores, muitas baseadas em pensamentos ditos utópicos, conquistou direitos sociais dentro do próprio capitalismo e em alguns lugares conquistou o próprio Estado, principalmente após as crises do momento imperialista desse sistema, o que ficou claro com as grandes guerras. Foi na primeira delas (1914-1918) que surge o primeiro estado chamado de socialista. Apesar dos equívocos ditatoriais impostos por Stalin, a Revolução Russa de 1917 ofereceu ao mundo uma demonstração de que também é passageiro um sistema social baseado na desigualdade a ponto de gerar uma guerra mundial. E isto ficou mais claro ainda após o sistema capitalista gestar as ditaduras totalitárias de Mussolini, Franco e Hitler (este com o apoio de Heidegger), além, é claro, da Segunda Guerra. Logo após o fim desta guerra, em 1949, a China faz a sua revolução socialista também se baseando em políticas ditatoriais. Dez anos depois, é a vez de Cuba. Esta última, apesar dos limites de ser uma ilha não capitalista cercada de Estados Unidos por  todos os "lados", tem uma tonalidade mais democrática, mas uma tonalidade que precisa também ser reatualizada. Não no sentido de uma volta ao passado como se deu com extinta União Soviética, mas de busca de atualização da utopia igualitária também do poder político.

Como já foi dito, o século XX realizou algumas das utopias e só não realizou mais porque o combate a elas foi muito forte. Usou-se desde as ditaduras (vide os casos do Brasil e do resto da América Latina) até a força das ideias religiosas (vide o combate do Vaticano aos teólogos que se aproximavam das utopias, como fizeram com os que defendiam "Teologia da Libertação"). Vide também os assassinatos de líderes dos movimentos populares.  Neste combate, não  esqueceram do circo das redes de televisão e de outras formas de "arte". Mas, não podemos deixar de lembrar Heráclito, o filósofo que nos mostrou que nada permanece sem transformação. 

O século XXI já está no sua segunda década e está muito claro que o jogo de "banco monopólio" realizado pelas grandes corporações  capitalistas tem gerado cada vez mais crises e guerras. Só estas últimas permitem que o império estadunidense não caia podre de uma vez. E a crise deste império afoga todo o sistema por ele hegemonizado. São dólares produzidos de forma artificial e lucros gigantescos de uma minoria patrocinada pelo Estado tanto no "império", quanto nas "colônias". Como contrapartida exigem mais sacrifício dos trabalhadores e, agora, tanto faz que sejam da Tunísia ou da Bélgica, da Espanha, ou da Grécia, dos EUA ou de Portugal, do Brasil ou da Rússia. A fome de lucros ameaça empregos e aposentadorias. Tudo isso, é claro, aumenta as desigualdades.  

No tempo futuro, aquele que sempre está para acontecer, as utopias parecem impossíveis e a catástrofe humana parece iminente. Mas é no tempo presente que produzimos as possibilidades. Nele podemos atualizar as ideias surgidas no século XIX e fazer melhor do que fizemos no século XX. As asas deltas foram criadas e precisam de aperfeiçoamento, principalmente no que diz respeito à questão política da democracia. Democracia, mas socialista (ou não seria uma utopia igualitária), pois a que temos- consentida pela sociedade empresarial- não passa de engodo.  Se vivo fosse,Salvador Allende, o presidente morto no golpe militar do Chile, saberia a que estou me referindo em seu 11 de setembro de 1973.
(Adaptação, para o Faísca Vermelha, do texto  O Tempo e a Utopia  publicado anteriormente pelo autor  no blog Amigo de Heráclito)

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