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terça-feira, 26 de janeiro de 2016

VIOLÊNCIAS, UMA REFLEXÃO SOBRE UM MORTO E O ESTADO









Ao caminhar a procura de uma farmácia neste domingo em Realengo, o bairro da zona oeste carioca imortalizado na famosa canção de Gilberto Gil, não só encontrei o que procurava como tive que passar por um corpo coberto por um pano e sujo de sangue. E na porta da farmácia. Próximo, com ar sofrido, um conhecido me disse que o corpo era de seu sobrinho. Era o seu sobrinho morto. Do outro lado da rua uma escola pública municipal e na mesma calçada da farmácia, a menos de vinte metros, um bar repleto de pessoas amortecidas, mas muito falantes e risonhas em suas mesas onde copos e cervejas balançavam. O contraste entre o rosto sofrido do conhecido e os rostos dos cervejeiros ainda me faze pensar sobre algumas canções, duas em especial: De Frente Pro Crime onde o poeta Aldir Blanc, com a melodia de João Bosco, cria uma crônica tão familiar a todos que passam por este tipo de violência e a outra é uma canção onde Chico Buarque nos diz que a dor da gente não sai no jornal.  

Realmente, a dor do meu conhecido não saiu no jornal e muito menos  pareceu ter chegado ao bar vizinho. Pensei na hora que além da violência física contra o falecido, muitas outras violências se apresentavam em tão pouco espaço, inclusive a violência de tornar invisível as dores, os sofrimentos dos familiares. Tentei compreender os donos dos rostos presente no bar como quem já se acostumou com tantas violências diárias nos jornais, nos televisores, nas suas salas, nas suas camas, nas suas ruas e nos seus locais de trabalho. Quem tanto vê e sofre e faz violências se acostuma de tal forma que parece nada sentir quando um corpo estirado, sujo de sangue, coberto por um pano e vigiado por um tio está quase ao lado dos pés. Um morto qualquer e seu vigia  são invisíveis para quase todos, da mesma forma como tornamos invisíveis o trabalhador faminto ou desempregado, o negro humilhado, a mulher assediada e subjulgada, a criança espancada e o preso torturado e como animal tratado.

Mas seria a violência algo restrito aos bairros pobres das cidades brasileiras? O uso da violência bruta e simbólica é algo que acontece apenas nas periferias das cidades de países da periferia do mundo? Ou será que a violência é algo inerente à sociedade em que vivemos? Um elemento comum, familiar, do sistema social em que estamos, tal capitalismo? É algo marginal ou central desse sistema? As respostas possíveis nos permitem repensar muitas coisas que ouvimos e lemos por aí. Podemos, por exemplo, repensar se são as revoluções que são violentas ou seria manter tudo como está a violência maior?

Qualquer sociedade onde uma parte de seus membros se apodera das riquezas criadas por outros não pode existir sem a violência. A própria fundação, o surgimento, de uma sociedade onde uma parte se apodera e explora a outra parte que trabalha não pode se dar sem a violência. Desapropriar os antigos proprietários de algo que era coletivo não é possível sem que se tivesse imposto essa desapropriação. Qualquer modo de produção não primitivo até hoje existente só se constitui tendo como base a violência. Sim, é isto mesmo, a violência também é estruturante das sociedades de classes. E isto não é uma novidade para o materialismo histórico. Marx, no capítulo XXIV de O Capital, deixa claro como foi que a Inglaterra, um dos berços do capitalismo, fez com os seus camponeses para que estes, desapropriados de quase tudo, tivessem que ir para as cidades em busca de suas sobrevivências. Nas cidades serviram às fábricas como proletários, os trabalhadores sem nenhum meio de produção que só possuem suas proles e suas forças de trabalho. Sabemos que homens, mulheres e crianças tiveram suas vidas consumidas rapidamente pelos trabalhos nas fábricas da mesma forma como estas consumiam também carvão, lenha, árvores. Assim, como insumo a ser consumidos pela fábrica foram tratados o carvão e a força de trabalho. Consumidos criam riquezas para os donos das fábricas.

No Brasil e em outros países dominados pelo imperialismo europeu sabemos que a violência também serviu à formação do capitalismo na Europa. A mão de obra escrava por aqui serviu de formas diversas à acumulação europeia. Vejamos duas: escravo-mercadoria trazidos à força da África e vendidos aqui dando lucros aos mercadores europeus e a seus acionistas (entre eles o pai do liberalismo, Jonh Locke) e o escravo força de trabalho produzindo mercadorias- como açúcar, café, algodão- que vendidas também para os mercadores europeus eram por estes revendidas permitindo lucros ainda maiores para eles e impostos para as metrópoles.

E a violência contra os trabalhadores do capitalismo ou do escravismo colonial não  se limitava à exploração do trabalho. Quantas escravas não tiveram que deitar com seus senhores sendo violentadas em suas intimidades? Quantas operárias não foram e são assediadas para manterem seus empregos? Quantos escravos e escravas não sofreram espancamentos e assassinatos feitos pelas mãos dos senhores ou de seus capatazes e capitães do mato? E quantos proletários e proletárias não sofrem violência física onde os atuais capatazes (policiais, jagunços, falsos milicianos...) usam da força bruta para agredirem os que lutam por uma vida melhor ou que não aceitam os desmandos dos patrões?

A violência é inerente às sociedades de classes. A classe exploradora, que é numericamente minoritária, tem a necessidade, para  manter a exploração contra a maioria, de se fazer também como classe dominante. E dominar é controlar as ações dos outros. E se controla, se domina, com o uso tanto da força bruta quanto da força ideológica. Daí a necessidade do grupo dominante de ter o controle de quem usa a força física (o grupo armado, militares e policiais) e de quem cria a lei (no mundo atual: vereadores, deputados, senadores), ou seja, a classe dominante, para controlar os trabalhadores, precisa ter o controle do Estado, a instituição que cria as leis e as impõe. Não tem como ter uma sociedade sem violência enquanto houver classe exploradora e Estado. 

Há uma controvérsia entre marxistas e anarquistas sobre a construção de uma nova sociedade sem exploração e sem violência em relação ao Estado. Alguns anarquistas defendem a possibilidade de construção em um futuro de uma sociedade sem classe social e sem Estado a partir de uma revolução que pusesse fim aos dois elementos de uma vez. O materialismo histórico não acha que isso seja possível, defende que a visão anarquista é utópica. Para Marx e Engels, antes do fim total do Estado e para a criação do comunismo, algo muito parecido com o que pretendem os anarquistas, é necessário primeiro conquistar o Estado para controlar e por fim à burguesia. O Estado criado, o Estado proletário, não seria o que hoje conhecemos. Marx chegou a dizer que o que foi construído pela Comuna de Paris era um exemplo do que ele chamou de ditadura do proletariado, ou seja, uma ditadura contra a burguesia realizada pelos proletários que, na Comuna, deliberavam sobre tudo, inclusive fazendo com que os que deliberassem algo (o poder legislativo atual) fosse os mesmos a executar o decidido. Os anarquistas criticam a visão marxista dizendo , entre outras coisas, que se há Estado, há opressão. Mas isto é algo que os marxistas até concordam. O problema é se a opressão é contra ou a favor dos trabalhadores e trabalhadoras. Até porque em nenhuma sociedade onde estes venham a fazer uma revolução, a burguesia e suas formas de pensar (explorar, ganhar sempre, lucrar às custas de outros, violentar, etc) irá realmente desaparecer como em um passo de mágica. Sem contar as possíveis retaliações das sociedades vizinhas tentando destruir o que estaria sendo construído, como ocorreu na Rússia, onde tropas estrangeiras e mercenários eram pagos para invadir e derrotar a Revolução que em 2017 fará um século. O fim do Estado, mesmo deste Estado Proletário, só seria possível após o fim das classes sociais e de suas formas atuais de pensar e agir. Isto requer o desenvolvimento de novas relações sociais e da formação (educação) de um novo tipo de indivíduos. Pessoas que seriam educadas a compartilhar riquezas e decisões, economia e poder. Esse novo homem (e mulheres, posto que, novamente, não se trata de gênero mas da humanidade) não surgiria da noite para o dia e nem é possível que surja hoje em grande maioria. Vivemos, não podemos esquecer, em uma sociedade onde a maioria é violentada todos os dias mesmo sem perceber, a violência diária banalizada é invisível aos olhares não atentos.

A violência, portanto é inerente às sociedades de classes, inclusive à  capitalista. Esta surgiu e se mantem se utilizando de diversas formas de violências. Todas as vezes que a luta de classes põe em risco o sistema capitalista, ele rapidinho mostra, com seus braços armados, a violência bruta. Em outros lugares e aqui, na periferia da Cidade Maravilhosa, a violência se faz principalmente contra os filhos dos proletários e os que são marginalizados. A começar pelos hospitais e escolas, mas também passando pela violência dos policiais e grupos marginais. Vira-e-mexe é um corpo jovem que cai ou nas drogas (mais uma mercadoria valorizada por esse modo de produção não é de hoje) ou no chão ensanguentado. E os (tele)jornais ou nada falam ou até debocham dos mortos formatando corações e mentes. No dia-a-dia, o uso da violência simbólica, parte da dominação ideológica, se faz constante   de tal forma que a banalização dos atos violentos nos faze aceitar que tornar invisível um corpo violentado e o tio entristecido que o vigia é algo normal. Quando não fazem pior, ridicularizam o morto e seus familiares. Mas ridículo mesmo é quem acha que manter esta sociedade não é a pior forma de violência.

Por Jorge Willian 

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