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segunda-feira, 27 de junho de 2011

QUEM VIVER CHORARÁ (EU CANTO)

O conforto da cama não foi suficiente para que eu não me levantasse e me pusesse a escrever. Nem mesmo o aconchego da pele macia da amada dormindo me manteve na cama.  Pareço que vou implodir se não encontrar uma válvula de escape para esse turbilhão de sentimentos que a nostalgia me trouxe. E olha que ela só surgiu porque resolvi procurar uma música no You Tube. Não  encontrei a que eu queria inicialmente, mas encontrei algumas canções de um disco maravilhoso gravado em agosto de 1978: "Quem Viver Chorará" ou "Eu Canto". O disco tem realmente dois títulos. Na capa é "Eu Canto", primeiro verso do poema "Motivo" de Cecília Meirelles e que ganhara uma bela  melodia. Mas o disco é também conhecido pelo título de sua contracapa: "Quem Viver Chorará", que também nomeia a única música instrumental do disco, um chorinho imperdível, mas que o amigo só encontrará  na internet na apresentação feita por Angelo Santedicola (ver último vídeo desta postagem) . Em quem viver Chorará o músico nordestino mantém uma dose de experimentalismo já apresentado em outros discos.
  
Diversas gravações deste disco de 1978 são memoráveis. A parte instrumental é maravilhosa não só em "Quem Viver Chorará". Há diversos outros solos instrumentais: de guitarra, de cavaquinho, etc.  Os arranjos e regência são do próprio cantor que, também como diretor musical, selecionou instrumentistas de primeira linha: Robertinho de Recife, Ife, Chico Batera, Dino, Manassés, Ozias e outros. Além disso, as vozes (no plural mesmo) do cantor valorizam as músicas lhes dando interpretações mais contundentes das letras e das melodias. Nessas interpretações com uma voz sobre a outra, faz-se (re)gravações definitivas e dando novos estilos às gravações originais. É o caso, por exemplo, de "As Rosas Não Falam" que Cartola considerou a melhor versão de sua música, mas o mundo do samba não gostou, pois nesta regravação a canção deixa de ser um samba (como o cantor já fizera com "Sinal Fechado" de Paulinho da Viola, mas que não conseguira um resultado tão bom). Outro bom exemplo de mudança de estilo imposta no disco acontece na música "Acalanto para Um Punhal" que ganha um toque cigano com a inclusão de uma guitarra  flamenca tocada pelo cantor e por Pedro Soler. A música "Jura Secreta" de Sueli Costa e Abel Silva que fora antes gravada por Simone passa também por mudanças que a deixam muito mais contundente. A sobreposição de vozes e o instrumental  fazem com que a bela canção pareça ter sido gravada pela primeira vez.

Em "Motivo" é acrescentado o "vocalise" de Amelinha, cantora até então desconhecida. Diz a poesia de Cecília Meirelles: "Eu sei que canto e a canção é tudo/ Tem sangue eterno a asa ritmada/ E um dia eu sei que estarei mudo/ mais nada". E olha que a poeta  se dizia, na mesma poesia, ser irmã das coisas fugidias, e que não sabia se permaneceria ou se se desfazeria. Mas hoje, ouvindo estas músicas, parecem mesmo que são eternas as asas ritmadas. Além disso, a canção me fez conhecer a poeta Cecília, a mesma que já tinha versos seus musicados na  bela canção "Canteiros". O músico responsável por "Quem Viver Chorará" tem o belo hábito de musicar poetas: além de Cecília, ele deu asas ritmadas a Florbela Espanca, Fernando Pessoa, Ferreira Gullar, Mario de Andrade e outros. No entanto, em  Canteiros o músico não deu os devidos créditos à poeta que ele adaptara sendo, portanto, acusado de plágio. Mas as asas ritmadas são eternas. Ainda hoje canto no banheiro e nas caminhadas pelas ruas da cidade estas canções. As vozes, a poesia, os instrumentos se eternizaram dentro de mim.

O disco tem outras belas canções (Pelo Vinho e Pelo Pão, Cigano) e a que ficou mais famosa e deu reconhecimento ao cantor foi "Revelação". A pequena letra nos fala do sentimento recalcado ("Sentimento ilhado/ morto, amordaçado") que quando parece esquecido sempre retorna ("volta a incomodar"). O solo de Robertinho de Recife na guitarra é imperdível. A música foi o primeiro sucesso popular na voz agreste do cantor cearense. Seu sucesso só foi superado mais tarde pela  música "Noturno", mais conhecida pelo grande público pelo nome "Coração Alado" (do  disco Beleza, também memorável) que foi tema de abertura de uma novela global com o mesmo nome. "Beleza", "Quem Viver Chorará" e "Traduzir-se" são, na minha opinião, os três grandes momentos do cantor, músico e compositor Raimundo Fagner. Três obras-primas da nossa vasta e rica MPB. Há quem critique, e com certa razão, os caminhos musicais tomado pelo artista posteriormente, mas estes três discos são fundamentais para a MPB, principalmente se lembrarmos que na época reinava por aqui as discoteques e suas músicas de pouca inspirações. Fagner, Ednardo, Belchior, Alceu, Zé Ramalho da Paraíba, Xanguai, Geraldo Azevedo, Elomar e outros nos mostraram o quanto era rica a música moderna do nordeste.

Seguem alguns vídeos retirados do You Tube com interpretações de nosso cearense Raimundo:

Revelação

Motivos

Apresentação do Disco de 1978 por Angelo Santedicola

4 comentários:

Eduardo Lurnel disse...

Como a humanidade viveu tanto tempo sem o youtube???rsrsrs

Anônimo disse...

Realmente, Eduardo, como podemos ter vivido sem este instrumento da cultura? Acho que o Youtube é a maior invenção do mundo da internet. Tudo que procuro conhecer encontro lá: música, aulas, documentário... Até a música que disse não ter encontrado no início da postagem está lá (eu e que não sabia o título corretamente) e chama-se "Semente", outro belo poema musicado por Fagner. Vale conferir.

Anônimo disse...

Esse disco é imperdível! A MPB sempre foi múltipla, diversificada e bela! E "Quem Viver Chorará" dá a medida exata dos vários ritmos que se pode usar pra fazer um grande disco! Baião, choro, rock e outros ritmos estão magistralmente reunidos num disco de apenas nove faixas! Outra realizacão dessas será difícil superar, simplesmente porque deixaram de surgir músicos do quilate do nosso querido Raimundo Fagner! Pra mim, a MPB decaiu demais, e o grosso, o bom da producão fonográfica brasileira está nos idos da década de 1970 e de uma parte da década de 1980... E o Fagner chegou pra ficar nesse período e continua sendo um dos raros grandes da MPB, pra sempre!

Jorge Willian da Costa Lino disse...

Concordo com o amigo, há raros músicos da nova mpb que se aproximam do que foi produzido por Fagner e outros no período dos anos 70/80. E não é saudosismo. Busco sempre coisas novas na mpb e o último grande achado foi o nordestino Zeca Baleiro. Um dos poucos a trabalhar com canções e com os novos ritmos.